segunda-feira, 17 de maio de 2010

Atualidades: Hugo Chávez e Simón Bolívar (1783-1830)



O presidente Hugo Chávez e um quadro com a imagem de Simón Bolívar ao fundo : apropriações e distorções


Distorções bolivarianas
Historiadores discutem transformação da figura de Bolívar por Hugo Chávez
 
Mariana Timóteo da Costa - Correspondente • CARACAS

O Globo, 17 de abril de 2010

O longo e violento processo de independência da América espanhola começou ainda em fins do século XVIII e só terminou em 1824. Entre os seus muitos personagens, coube a Simón Bolívar (1783-1830) o título de Libertador. É dele o posto de personagem histórico mais complexo e de maior influência no imaginário político continental, devido tanto à sua produção intelectual — era um homem muito culto e viajado, que deixou vasta obra escrita — quanto ao seu heroísmo militar.

Nascido na aristocracia caraquenha, Bolívar liderou movimentos e guerras pela independência que influenciaram diretamente cinco países: Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia. Se muitos políticos e líderes da região ao longo de quase dois séculos se apropriaram da figura do Libertador, nenhum usou-a e adaptou-a tanto como o atual presidente Hugo Chávez.

Neste 19 de abril de 2010 — quando é comemorado o bicentenário da rebelião que iniciou o processo de independência da Venezuela — torna-se inevitável analisar o que os historiadores chamam de mito, utopia ou até mesmo alegoria bolivarianos. É importante ressaltar que a Venezuela foi pioneira no movimento pela independência, já que, em 19 de abril de 1810, um grupo formado pela sociedade civil, com o apoio de militares como Bolívar, se recusou a reconhecer o governo espanhol. A Venezuela também foi o país que mais sofreu com as guerras que vieram depois: até 1824, 44% de sua população haviam sido mortos.

Chávez subverte frases do líder

O fato de Bolívar ser venezuelano e a luta ter começado aqui, faz do Libertador um mito ainda muito presente no imaginário popular.

E o discurso de Chávez em relação a ele fez o personagem crescer não só na Venezuela como em países cuja política ela influencia, como Equador, Cuba e Nicarágua. Os líderes desses países, aliás, são esperados em Caracas no próximo dia 19 para uma série de comemorações pelo bicentenário preparadas pelo governo.

Ana Teresa Torres, autora de “A herança da tribo — Do mito da independência à revolução bolivariana” (sem previsão de ser publicado no Brasil), conta que a primeira notícia que se tem de Chávez evocando Bolívar data de 1982. Militar e conhecedor profundo dos escritos do Libertador, Chávez funda ao lado de colegas militares como ele o Movimento Bolivariano Revolucionário 200 — o número em homenagem ao bicentenário do nascimento de Simon Bolívar, um ano mais tarde.

— Já na época ele tinha planos de derrubar o regime da Venezuela e governar o país — diz Ana Teresa Torres.

Como lema do movimento de Chávez, uma frase atribuída a Bolívar em 1805 dizia: “Não deixarei meu braço descansar e minha alma repousar enquanto não quebrar as correntes que nos oprimem por ordem das autoridades espanholas”. Chávez trocou para: “correntes que oprimem o meu povo, pela ordem dos poderosos”.

E acrescentou: “Eleição popular, homens e terras livres, horror à oligarquia”.

— Dez anos depois, ele tentou dar um golpe militar contra um presidente eleito (Carlos Andrés Pérez). Saiu derrotado e preso mas, uma vez mais, evocando o Libertador, afirmou que os sacrifícios dele, assim como os de Bolívar, valeriam a pena para um dia resgatar no povo venezuelano “a essência de sua luta” — explica a escritora, ressaltando que Chávez, ao dar este tratamento “messiânico, de Cristo, a Bolívar, se autoglorifica, além de tratar política como guerra”.

Ana Teresa Torres argumenta que, analisando a história da Venezuela, é muito compreensível entender o surgimento de um líder como Hugo Chávez. Trata-se de um povo, segundo ela, com história de culto aos militares, como sendo os únicos com força e capacidade suficientes para dar um jeito no país, quando as coisas vão mal — diferente do que acontece em outros países da região, onde militares são associados a golpes e repressão.

Nas escolas da Venezuela, as crianças aprendem mais sobre as glórias de Bolívar do que sobre o papel dos civis, extremamente importante na luta pela independência.

— Os meninos sonham em seguir carreira militar, é um status aqui. Aí surge uma figura como Chávez, prometendo resgatar esses valores, com um discurso carismático, num momento em que a democracia conduzida por civis aqui há mais de 40 anos estava em crise. O resultado? Os venezuelanos não se incomodaram de eleger um militar de esquerda, que já havia tentando dar um golpe de Estado.

Um socialismo que nunca existiu

A partir daí, o presidente pode iniciar sua Revolução Bolivariana.

Mas se até então, mesmo por Chávez, Simón Bolívar era tratado como um Cristo, o novo presidente descobriu o potencial político do mito. A Constituição de 1999 foi chamada de Bolivariana; no mesmo ano, o país trocou seu nome para República Bolivariana da Venezuela; em 2003, foram criadas as Missões Bolivarianas; de 2007 para cá, o conceito de socialismo bolivariano do século XXI se intensificou, com Chávez espalhando-o para outros países da região.

— Esta é a maior deturpação do mito. Desde quando Bolívar foi socialista? Ele viveu antes de o conceito surgir. Mas (Karl) Marx está distante do povo, Bolívar está perto.

Chávez mais uma vez mistura, em seu discurso, inúmeras referências — observa Ana.

Elías Pino Iturrieta, diretor da Academia Venezuelana de História, acha que olhar para o passado é sempre bom, se “a memória faz o exercício de olhar de maneira distinta”.

— Na liturgia chavista predominam estereótipos em torno de feitos heroicos e de uma glória perdida que só pode ser recuperada se seguirmos seus passos. Assim, a memória se transforma numa cortina que impede a observação da atualidade.

Mutações chavistas

“Sabido é por todos, nesta terra bolivariana, que na Venezuela, desde muito tempo, já se pôs em marcha um processo revolucionário que leva em suas entranhas o mesmo ideal daquele com que começou a luta pela independência, lá atrás, em 1810, nesta mesma Caracas” • CHÁVEZ, EM 2 DE FEVEREIRO DE 1999, NO DIA DE SUA POSSE COMO PRESIDENTE.

“Sinto que a energia da minha alma se eleva, se alarga e se iguala sempre à magnitude dos perigos. Meu médico me disse que minha alma necessita alimentar-se de perigos para conservar meu juízo, de maneira que, ao me criar, Deus permitiu esta tempestuosa revolução, para que eu pudesse viver ocupado em meu destino especial” • CITANDO SIMÓN BOLÍVAR NUMA CARTA ENVIADA EM MARÇO DE 1999 AO VENEZUELANO ILICH RAMÍREZ SÁNCHEZ, O CHACAL, PRESO NA FRANÇA. CHÁVEZ JÁ DEFENDEU SÁNCHEZ PUBLICAMENTE EM VÁRIAS OCASIÕES.

“Bolívar voltou e se transformou em povo e é por isso que a oligarquia reage como as serpentes, porque os oligarcas são os mesmos de ontem, com outros rostos e nomes, e os bolivarianos de hoje são os mesmos de ontem (...) somos os mesmos lutadores pela independência, pela dignidade, pela liberdade e pela igualdade do nosso povo. Não poderão conosco.

(...) Se Bolívar foi traído e mandaram assassiná-lo (...), agora venceremos” • EM 10 DE JANEIRO DE 2002, QUANDO SEU GOVERNO ENFRENTAVA UMA CRISE QUE CULMINARIA COM UMA TENTATIVA DE GOLPE. O PRESIDENTE AFIRMA QUE BOLÍVAR FOI ASSASSINADO, MAS ELE MORREU, AOS 47 ANOS, DE TUBERCULOSE.

“Este NÃO tem muitos anos, este vermelho está guardado na alma dos povos oprimidos, durante séculos, é o NÃO do sangue de Cristo na cruz, o vermelho que representa o NÃO. (...). É o mesmo NÃO de Simón Bolívar quando ele disse NÃO à riqueza material e terminou morrendo em Santa Marta sem uma camisa para colocarem em seu cadáver. É o mesmo NÃO dos que foram atrás de Bolívar (...), o mesmo NÃO do povo da América Latina , que disse NÃO ao imperialismo e à escravidão” • EM 8 DE AGOSTO DE 2004, QUANDO CELEBROU O NÃO A UM REFERENDO REVOCATÓRIO DE SEU MANDATO COMO PRESIDENTE

“O sistema de governo perfeito é aquele que produz a maior soma de felicidade, de segurança social e de estabilidade política. Esse sistema não tem outro nome a não ser sistema socialista” • DISCURSO DE POSSE DE SEU TERCEIRO MANDATO, EM 10/01/2007. A PRIMEIRA FRASE É DE BOLÍVAR, MAS A SEGUNDA É DE SUA PRÓPRIA LAVRA.

>>>>>Para saber mais sobre o tema<<<<<<

LIVROS

“Política externa na era da informação”, de Leonardo Valente (Ed. Revan).

“Hugo Chávez sin uniforme” (Ed. Random House Espanha), de Alberto Barrera.

“Pensar a Venezuela” (Ed. Alfa), de José Balza.

“O Libertador — a vida de Simón Bolívar” (Ed. Rocco), de Moacir Werneck de Castro.

“Simón Bolívar”, por Karl Marx (Ed. Martins Fontes).

“The Hugo Chávez story, from mud hut to perpetual revolution”, Bart Jones (Ed. Random House).

FILMES

“Bolívar soy yo”. DVD. Direção de Jorge Alí Triana.

“Simon Bolivar” (The hispanic and latin american heritage video collection). VHS.

LINK

Chávez, por Gabriel García Márques: http://diplo.dreamhosters.com/2000-08,a1803.html

Fonte: Blog do Fabrício Gomes

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